Testemunho Real - Era eu ou era ele

Testemunho Real - Era eu ou era ele

Sentei-me no chão e chorei, chorei abraçada a mim mesma, chorei durante muito tempo, balançando o meu corpo de forma a que a dor passasse.

Não queria estar sozinha e escolhi-o. Uma péssima escolha, mas era o que estava mais à mão. Na altura não racionalizei a minha escolha, achei que tive sorte em tê-lo encontrado e que íamos viver um conto de fadas. Cedo começamos a fazer planos para ir viver juntos e assim o concretizamos. Fomos morar para um apartamento meu no coração de Lisboa.

Nos primeiros seis meses tudo correu relativamente bem, não tão bem como esperava, mas era natural, afinal estávamos a "acertar agulhas". Ele já tinha dado os primeiros sinais do seu desequilíbrio, telefonemas que não pude atender e que resultaram numa reação desproporcional ao acontecido. Entre gritos e berrarias lá conseguia que se acalmasse. Tornei-me refém do meu telemóvel, com medo das tuas reações. Chegar a casa mais tarde, devido às horas extraordinárias que tinha que fazer no trabalho, era sinónimo de ser recebida com um silêncio sepulcral, que me fazia sentir a pior pessoa do mundo e sem me aperceber fui-me anulando e perdendo a minha autoestima.

Cheguei a casa eram nove da noite, depois de doze horas de trabalho, ele estava sentado na sala a olhar para a televisão. Sabia de antemão que me iria tratar com silêncio, mas nessa noite surpreendeu-me, levantou-se e dirigiu-se a mim com um sorriso malicioso, "Trouxeste o maço de tabaco que te pedi?" - disse ele - Qual maço de tabaco?" - Perguntei eu - "O maço de tabaco que pedi que comprasses antes de vir para casa" - "Não me lembro de mo teres pedido”.

A cara dele ficou séria e a raiva começou a despontar no seu olhar, gritou comigo até começar a espumar da boca, ainda tentei conversar com ele de forma civilizada, mas ele não me ouviu. Pegou-me pelos ombros e atirou-me para o chão. Bati com a cabeça na esquina de um móvel e imediatamente comecei a sangrar, mas nem isso o fez parar. Em vez de sair de casa, dirigi-me à casa de banho de maneira a ver o golpe que tinha na cabeça e as lágrimas começaram a cair, não queria chorar, mas não conseguia não o fazer. Ele ouviu-me e achou que ainda merecia mais e foi nesse momento que me brindou com uma saraivada de insultos. O que restava de mim morreu naquele dia. Foi dormir, fechou a porta do quarto e ali fiquei sentada no chão, a balançar o meu corpo de forma a conseguir encontrar algum conforto de outrora. O embalo que uma mãe dá ao seu filho para o consolar das maldades do mundo.

Na manhã seguinte acordou-me com um bom dia enérgico, como se nada se tivesse passado. Pediu que me fosse arranjar, porque me ia compensar pela noite anterior. Compensar portanto, como se algo pudesse compensar o que se havia passado. A partir desse dia a minha vida tornou-se algo indescritível, todas as semanas era vítima de violência doméstica, fosse ela psicológica ou física. Mantive-me presa naquele ciclo vicioso, cada vez mais destruída por dentro e por fora. Deixei de ir trabalhar, deixei de estar com amigos e fechei-me num mundo só meu.

Era uma mulher financeiramente independente, interessante e inteligente, não precisava dele para absolutamente nada, então porque me sujeitei a este calvário, a esta humilhação? Foi a pergunta que me fizeram quando relatei pela primeira vez a minha história, não soube responder na altura, hoje sei que foi por vergonha e por achar que não era capaz de sair daquela situação.

Passou um ano desde o primeiro episódio de violência, vivia fechada em casa e não tinha forças para nada. A depressão instalou-se e o esgotamento emocional era colossal e foi nessa altura que a minha cabeça começou a pregar-me algumas partidas. Comecei a ficar ausente e sempre que a violência começava, o meu cérebro desligava. Foi a maneira que arranjei para suportar tanta humilhação. O tempo passou e ele começou a deixar de vir a casa, passava dias e dias sozinha e foi essa solidão que me permitiu recuperar algum discernimento e tomar decisões.

As ausências do meu "príncipe encantado" deviam-se às inúmeras donzelas que precisavam de ser socorridas e foi esta carência das mulheres que me salvou do inferno em que vivia. Infelizmente, ainda vivemos numa sociedade que marginaliza as mulheres que não têm um homem ao seu lado, são conotadas de encalhadas ou lésbicas. E quantas vezes são as próprias mulheres a proferir este tipo de afirmações? Demasiadas! Por vezes é mais fácil olhar para o lado, em vez de olhar para dentro. Se muitas delas o fizessem, dariam de caras com uma relação doente, onde as traições são recorrentes, onde a cumplicidade nunca existiu e em que o sexo é algo dispensável.

Ao fim de seis meses, estava pronta para recomeçar a minha vida. Mudei a fechadura de casa, enviei as coisas dele para casa dos pais e dei por fechado este capítulo da minha vida. Consegui voltar a trabalhar, a cuidar de mim e a gostar de mim. A campainha tocou, abri a porta e imediatamente fiquei sem sentidos. Tinha levado um soco na cara. Quando comecei a vir a mim, estava coberta de sangue e estava deitada no chão. Ouvia-o ao longe "Sua cabra, quem te deu autorização para mandares as minhas coisas para casa dos meus pais? Diz-me sua puta, quem foi que te deu autorização?". Ainda não estava minimamente restabelecida do soco, quando ele me arrastou-me pelos cabelos até ao quarto. Deitou-me em cima da cama e violou-me. Eu só pensava: "Porquê eu? Mas porquê eu? O que foi que fiz para merecer isto?".

Assim que terminou, levantou-se e foi tomar banho, como se aquela fosse a casa dele e eu fosse a intrusa. Levantei-me e fui até à cozinha, abri a gaveta e peguei numa faca, a maior que tinha. Voltei para o quarto e entrei na casa de banho. Ali estava ele, na minha banheira, a utilizar as minhas coisas, como se fosse o dono de tudo, inclusivamente meu dono e senhor. Ele riu-se quando me viu e sem demoras perguntou "Gostaste?". Sorri e aproximei-me dele, vi a confusão a instalar-se na sua cara e sem ele imaginar espetei-lhe a faca no pescoço. Lembro-me como se fosse hoje, o ar incrédulo estampado no seu rosto, morreu porque era um tremendo de um presunçoso, que achava que só acontecia aos outros. Vi-o morrer, não proferi uma palavra e nada fiz para o socorrer. Não havia e nunca houve lugar para arrependimentos. Era eu ou ele, não havia outra escolha, era ele que ia morrer.

Se viver uma situação de violência não se cale, não tenha medo. O silêncio só dá mais poder aos agressores, o medo só prejudica quem não fala.

Contacte:

APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima - Chamada gratuita 116 006

AMCV - Associação Mulheres contra a Violência - 21 3802160

Posted on 2016-11-25 ESTÓRIAS 0 18204

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